martes, 9 de febrero de 2010

Y éste el olor a Rusia en portugués

O cheiro da Rússia

Quando era pequeno, adorava tudo o que cheirava a Rússia. Nunca, em toda a minha curta vida, tinha visto nada que se parecesse com um russo nem fazia a mais remota ideia de como seria esse país, nem os aromas que se podiam esconder pelas suas ruas ou nas suas casas e, realmente, custava-me decifrar os códigos que permitissem à imaginação desenhar um mapa mental daquilo que se escondia por detrás da Cortina de Ferro. Mas eu adorava o cheiro que tinha a Rússia . É verdade que dispunha de muitos dados em manuais escolares cujas edições eram renovadas de duas em duas gerações de russos, mas só falavam de história e política e nunca de coisas tão interessantes como os sabores, as formas, as cores, as palavras, os cheiros… e isso, para uma criança, não são dados válidos.
Na verdade, não sei de onde vinha aquela obsessão pela Europa de Leste, pois, curiosamente, também não sabia o que havia mais para o norte da minha terra, nem como era salgado o mar que se perdia ao sul, nem o que se podia encontrar se atravessássemos a fronteira que nos separava de Portugal, um país que, a julgar pelas conversas que tinha ouvido a meus avós, devia estar cheio de café. Nada daquilo me interessava. A minha atenção estava virada para a Rússia e, se fizesse um esforço, conseguia imaginar belas mulheres envoltas em grossos casacos de peles para se resguardarem de um frio que eu imaginava ser imenso. Também podia sonhar com formas de edifícios terminados em pontas de cebola e se parasse um pouco e fechasse os olhos, palavras russas amontoavam-se na minha cabeça, que também sabia dar cor, branco gelado, a umas ruas atapetadas de neve e repletas de aromas.
Nessa altura, a BIC tinha uns marcadores de cor com umas tampinhas que eu achava, literalmente, deliciosas. Um dia descobri que a minha predilecção por roer esses pedaços de plástico tinha um motivo: sabiam a Rússia. Por isso, podia passar horas a chupá-los para tentar gravar no palato os sabores dos czares.
Além disso, perto de minha casa, a Telefónica tinha um posto com umas grades que davam para umas escadas, atrás das quais eu imaginava esconder-se o mecanismo que fazia funcionar os telefones. Todos os dias, ao sair da escola, corria até lá para tentar descobrir a telefonista que me perguntava para que número desejava ligar sempre que eu levantava o auscultador. As escadas
daquele posto pareciam-me mágicas, mas um dia também se tornaram eternas, quando identifiquei na casa ao lado, vindo de trás de uma enorme porta de madeira, aquele cheiro tão característico. “Aqui cheira a Rússia”, pensei. E, desde então, todos os dias eu me detinha ali a cheirar aquele pedacito de fragrância comunista que estava perto de minha casa.
Um ano deixou de fazer frio na minha cidade e deixaram de se fabricar canetas BIC com tampinhas russas. Além disso, a casa ao lado do posto da Telefónica foi demolida para dar lugar a um edifício de apartamentos e, assim, sem referências, aquele cheiro evaporou-se para um recanto da minha memória. Se fizer um esforço, consigo desenhar mentalmente o perfil daquelas formosas mulheres vestidas de peles, ou recordar a ideia que fazia do frio russo, mas infelizmente, a certeza do aroma perdi-a para sempre. A que cheira a Rússia? Já não faço a mínima ideia. Às vezes, iludo-me a mim mesmo e decido que esse cheiro deve ser um misto de humidade e terra molhada depois da chuva. A diferença é que agora sei que se trata de uma sensação pré-fabricada.


DIEGO GONZÁLEZ
(Villanueva de la Serena, Badajoz, 1970)
É autor dos livros de poesía: Mudanças en los bolsillos (2007), Mil formas de hacer la colada (2006, prémio Cidade de Ronda- Poesia) e Línea 2 (2005). Publicou também o romance La importancia de que las abejas bailen (2008, prémio Felipe Trigo do romance curto). Licenciado em Ciências da Informação, trabalhou em diversos meios de comunicação. Actualmente é guionista e produtor de conteúdos audiovisuais.

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